Se não devo impor minha cultura, até onde devo me adaptar à cultura do outro?
Além disso, existe um limite saudável para a contextualização do evangelho? Essas perguntas ocupam o centro da missão transcultural. E, para respondê-las com honestidade, precisamos primeiro desmontar alguns equívocos comuns.
Contextualizar não é “virar nativo”
Um dos mitos mais recorrentes na missão é a ideia de que contextualizar significa apagar diferenças. No entanto, isso não é verdade. Contextualização não significa fingir que você nasceu naquela cultura. Também não significa romantizar o “local”. Muito menos copiar práticas sem compreendê-las. E, certamente, não implica perder a própria identidade.
Nesse ponto, o missiólogo Stephen Bevans oferece um esclarecimento fundamental: toda fé cristã é vivida dentro de um contexto cultural, inclusive a nossa. O problema surge quando passamos a enxergar apenas a cultura do outro como “cultural”, enquanto tratamos a nossa como neutra ou automaticamente bíblica.
Quando isso acontece, deixamos de perceber algo essencial: também carregamos valores, hábitos e pressupostos que não são o evangelho em si, mas apenas a forma como o evangelho nos alcançou.
O objetivo da contextualização é remover barreiras e não criar confusão
Por isso, a pergunta-chave da missão não é: “até onde posso ir?” mas: “o que está atrapalhando o evangelho de ser compreendido?”
O missiólogo Paul Hiebert propôs o conceito de contextualização crítica justamente para lidar com esse desafio. Ele afirma que a missão precisa evitar dois extremos igualmente problemáticos. A subcontextualização: quando o missionário mantém suas formas culturais e exige que o outro se adapte a elas. E a supercontextualização: quando tudo é absorvido sem discernimento, diluindo o conteúdo do evangelho.
O caminho saudável está no meio e para encontrá-lo, precisamos de um critério maior do que preferências pessoais ou reações emocionais. A contextualização do evangelho não é uma tarefa de indivíduos, mas sim de uma comunidade.
A encarnação de Cristo como chave para o discernimento
Para entender esse “caminho do meio”, precisamos olhar para a encarnação de Cristo. A afirmação de João 1:14 “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, não descreve apenas como Jesus veio, mas como Deus escolheu se revelar.
Deus não entrou em uma humanidade genérica. Ele entrou em uma cultura específica. Jesus não veio como um ser humano abstrato. Ele nasceu judeu, falou aramaico, viveu sob a Torá, frequentou festas locais, usou parábolas agrícolas e domésticas e se moveu dentro das tensões sociais e políticas do seu tempo.
Isso é crucial: Deus não ignorou a cultura para salvar, Ele entrou nela. Ele claramente fez a contextualização do evangelho. A encarnação mostra que o problema nunca foi a existência da cultura, mas o que fazemos com ela.
Então, até onde ir na adaptação?
Não existe uma lista universal de “pode” e “não pode”. Mas existem critérios sólidos que ajudam o missionário a discernir. Muitas tensões na missão surgem porque confundimos princípios bíblicos com preferências culturais.
Para avançar nessa reflexão, vale perguntar com honestidade: isso é claramente ensinado nas Escrituras ou é apenas “o jeito que sempre fizemos”? Ou: Isso pertence ao núcleo do evangelho ou à forma como ele foi expresso na minha cultura?
O idioma, vestimenta, música, formas de reunião, etiqueta social, noções de tempo, hospitalidade, alimentação, tudo isso é campo legítimo de adaptação. O evangelho não depende dessas formas para existir. Logo, são áreas de contextualização para tornar o evangelho acreditável.
Quanto mais cotidiana a área, maior a necessidade de adaptação
Aqui, uma regra simples ajuda muito no discernimento: quanto mais cotidiana a área, maior a necessidade de adaptação. Por exemplo:
- aprender a língua local,
- comer a comida local,
- respeitar hierarquias sociais,
- entender como as pessoas resolvem conflitos,
- aprender quando falar e quando calar.
Essas adaptações não funcionam como “estratégias missionárias”. Pelo contrário, elas expressam uma postura de amor e respeito. Nesse sentido, como demonstra Lamin Sanneh, a tradução do evangelho historicamente começa na vida comum, e não no púlpito ou nas estruturas formais da religião.
A encarnação também confronta a cultura do missionário
O missionário não avalia apenas a cultura do outro à luz da Bíblia. Ele permite que sua própria cultura seja confrontada primeiro. Valores como: individualismo, pressa, eficiência extrema, comunicação direta demais, noções ocidentais de sucesso e produtividade raramente são neutros. Muitas vezes, precisam ser desconstruídos no coração do missionário antes que o evangelho possa ser comunicado com clareza.
Contextualização não é técnica — é postura espiritual
Jesus não se encarnou para “funcionar melhor” ou para gerar mais conversões. Ele se encarnou por amor. E isso muda completamente o tom da contextualização missionária.
Porque contextualizar não é técnica, não é marketing cultural. Mas sim, uma postura espiritual de esvaziamento (kenosis), como Paulo descreve:
“Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens.” (Filipenses 2:5–7)
Conclusão: o alvo da contextualização
Na encarnação, Deus não ignorou a cultura — nem foi engolido por ela.
Ele entrou nela para redimi-la. Esse movimento define o modelo da missão cristã.
Jesus se fez semelhante a nós sem deixar de ser quem era. Da mesma forma, contextualizar significa seguir esse movimento.
O objetivo da contextualização não é ser “culturalmente perfeito”. É tornar Cristo compreensível naquele contexto. E talvez esse seja um dos maiores frutos da missão transcultural: não apenas levar o evangelho a outros povos, mas permitir que Deus refine, amplie e transforme o próprio missionário no processo.




